quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Durden

a menina caminhava no inferno
caminhava no inferno e encontrou
encontrou, no chão, um rosto
um rosto tão familiar
a menina encontrou a paz
no inferno, encontrou a paz
é que ela cuspia no espelho
suas tranças suadas, carentes
desprezavam o reflexo que viam
mas no meio daquele calor
ela viu seu reflexo no fogo
ela viu seu reflexo e gostou
e gostou dos cachinhos que tinha
descobriu seu sorriso blasé
descobriu que não tinha mais medo
medo mesmo, só tinha do escuro
mergulhava em seu próprio alívio
se deixava lamber pelas chamas
pelas chamas cada vez mais

a menina caminhava no inferno
caminhava no inferno sua paz.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Biunívoco


ébria de orgulho, sentia
na minha roupa ainda impregnada
todas as minudências dos cheiros
dos mais imperfeitos dos seus clones

meus passos febris, mecanizados
pareciam ter a única função
de me levar para onde não estou
só mais um movimento em movimento
provocando a inércia do meu ser

eles sempre vão
velozes, lúgubres
em meio a tantos despropósitos
deixam para trás só penumbra
e partem, partem, partem
partem você ao meio

escorrem por trás da gélida máscara
os nós do fantasma cinzento
que você me deixou de herança
os nós do inferno de nós
dois
nossos nós
ainda que nós
só nossos.

Adieu

de olhos fechados eu via
o menino religioso
e, sobretudo, desamparado
perdendo
pouco a pouco
tudo aquilo que já não tinha

vingt ans
et
tout le poids du monde
o maior dos infortúnios

cruel destino, seguramente
toda a justiça do reino
às dez horas e vinte e dois
ser mandada para a guilhotina

o dia, porém, se acabara
apesar de toda a luz
era tarde e só havia escuro

hesitou
escutava os tambores
que tomavam conta da praça
era tão intenso o frio
que já estremecia
antes mesmo de ousar subir
os degraus do cadafalso

"sire"
e abaixa a cabeça
uma corda envolve os seus punhos
perdão por todos os lados

c'est une révolution
e para cimentá-la:
meu sangue.
se é para o bem de todos
e felicidade geral da nação
entrego minha alma a Deus
entrego minha alma, adeus.

sábado, 6 de outubro de 2012

Inferno


com muita calma
ele abriu a janela
o vento trazia
uma melodia
quase tão doce
quanto as suas palavras

mentiras no escuro
do seu quarto
mentiras que fazem
seus olhos sorrirem
e fazem sentido
e trazem o sono
mentiras nas cordas
do seu violão

boa noite
o livro se fecha
já não se escuta sequer uma nota
me abraça e conforta
as minhas saudades
pede "não desiste"
e desiste de mim

tic tac
a alma já nua
gemendo baixinho
de tanta dor
um grito execrável
afasta as memórias
que insistem em não
desistir de voltar

"é que eu me preocupo"
mas já era junho
era frio demais
e ele fecha a janela.